Naquele tempo, quem queria um par de botas novas sentava-se em frente ao sapateiro e esperava que ele lhas fizesse. Entrava descalço e saía calçado. Problema resolvido, necessidade satisfeita, cliente feliz, artesão governado. Era assim no princípio do mercado! Todos viviam felizes, num equilíbrio razoável entre oferta e procura, uns procurando apenas o que a necessidade ditava e outros oferecendo apenas a resposta imediata e tangível à demanda de que quem tinha pés e meios para comprar uma protecção de cabedal. Nem sequer a localização era problema. Quem se achava capaz de manobrar as gáspeas montava banca de oficial na Rua dos Sapateiros e quem pretendia calçar as extremidades dirigia-se à mesma rua. Como eram felizes os marketeers dessa época…
Mas, como sabemos, depois tudo se complicou. Desmentindo uma velha crença social segundo a qual todos os sapateiros fazem o mesmo – sapatos, pois claro – o sapateiro João do Ferro, que antes de se entregar às solas fora aprendiz de fundição e rapaz dado às artes manuais, decidiu surpreender um cliente com uma biqueira metálica, muito útil para acelerar o cavalo e partir pernas a impertinentes.
O uso da notável inovação fez muito pelo dono das botas mas fez ainda mais pelo criador das ditas. Muitas e variadas razões levaram dezenas de valerosos mancebos a procurar no João do Ferro a solução para a debilidade dos calcantes, saindo da Rua dos Sapateiros a reluzir biqueiras metálicas por toda a Lisboa, espalhando notícia e fama desse milagroso torneador de cabedais sito na Rua dos Sapateiros.
Em pouco tempo, as pessoas que realmente contavam na capital do reino reconheciam-se pelas botas do Ferro que tinham nos pés. As botas do Ferro – ou Botas Ferro, como carinhosamente passaram a ser conhecidas – tornaram-se um diferenciador de estatuto e, nessa medida, um bem de primeiríssima necessidade. Ter umas Botas Ferro passou a ser um indicador de condição social e um requisito de entrada em algumas romarias.
Enquanto estas transformações no domínio da sociologia faziam História, no campo da Economia alguns lances dramáticos espreitavam já os destinos de João do Ferro, agora mais conhecido como João das Botas, numa assumpção clara e definitiva da sua predominância produtiva no campo da sapataria evolutiva.
O seu sucesso foi tão surpreendente para a Rua dos Sapateiros que despertou o ódio dos inimigos, a inveja dos amigos, a suspeita das autoridades, a vaidade da esposa e a impaciência dos clientes. João tinha visto muito ferro fundir-se e sabia algumas verdades básicas sobre a vida, pelo que foi respondendo à tormenta o melhor que pôde, continuando a ganhar bom dinheiro pelas biqueiras.
Mas o maior desafio da sua vida aconteceu naquela manhã de Outubro, quando ao descer a Rua dos Sapateiros a caminho da oficina, descobriu mais de uma dúzia de oficiais do mesmo ofício vendendo as “suas” Botas Ferro, por menos dez centavos. Por pouco não teve uma apoplexia e quase lhe custou a alma perceber que afinal as suas biqueiras reluzentes eram já coisa comum, alcançadas por outras mãos e pagas para muitos pés.
Afundado no desespero, fechou-se em casa a matutar. A mulher pensou que delirava, mas ao fim de três dias sem comer nem beber, João do Ferro – perdão, João das Botas – reuniu a família na sala e segredou-lhes que tivera uma visão, tão excitante como aterradora.
Perante o silêncio da consorte e a expectativa dos herdeiros, declarou:
– «Meus filhos, esta família iniciou uma grande revolução social. As nossas biqueiras levarão a Humanidade a grandes conquistas e o futuro dos sapateiros será gloriosamente reconhecido nos séculos vindouros. Nós descobrimos o segredo da sapataria evolutiva, somos o cromossoma insatisfeito que faz avançar a vida e a aperfeiçoa. Tudo isto me foi revelado nos últimos três dias de estupor e reflexão. Mas há algo que devo já dizer-vos, para que vos prepareis e não temais…»
Neste passo do discurso, os semblantes juvenis dos filhos e a tez morena da esposa foram percorridos por um véu de receio, mas o grande João prosseguiu:
– «Em verdade vos digo: sei que jamais teremos sossego, jamais dormiremos seguros do amanhã, jamais tomaremos a dianteira da rua sem olharmos por cima do ombro vigiando o perigo. Meus queridos: nós inventámos a concorrência e fomos glorificados em toda a cidade, mas agora seremos vítimas da nossa própria invenção, porque o segredo está rua e a rua está contra nós. Só nos resta uma coisa…»
Os olhares apavorados pediam a piedade paterna. Mas João das Botas de Ferro não se deteve:
– «Só nos resta uma coisa: o nosso nome. Temos um nome conhecido em Lisboa e arredores, somos os inventores das melhores biqueiras metálicas e não vamos deixar-nos liquidar por imitadores mais baratos.
Rapazes: já para a oficina. Trabalhem mais depressa e gastem menos cabedal.
Mulher: lança o pregão pelas ruas. Afiança às gentes que as Botas Ferro são de aço, outros prometem mas eu faço. Venderemos mais barata a nossa vitória. A História só agora começou e a concorrência desses asnos só me dá mais ganas de esmagá-los. Com biqueiras ou sem biqueiras, como o cliente quiser.»
O resto da História toda a gente a conhece.
Paulo Fidalgo